Por Ernesto Marques*
Ah, nada como o motor da história… repetindo-se como tragédia ou como farsa, como disse um certo barbudo alemão, ela, a História, sempre nos adverte quanto às consequências da sua repetição. Num intervalo de 35 anos, inaugurações de aeroportos na terra do 2 de Julho registram fatos políticos relevantes sobre a matriz e a qualidade de políticos que reivindicam protagonismo na liderança da terra-mãe do Brasil livre e independente.
Em 4 de setembro de 1984, o ACM original completava 57 anos de bola murcha nos estertores da ditadura militar que tanto poder lhe rendeu. Naquele dia, o último militar presidente, o general João Baptista Figueiredo, visitava Salvador para inaugurar a reforma e ampliação do Aeroporto 2 de Julho.
Tancredo Neves despontava como virtual vitorioso na eleição indireta que se avizinhava, . graças aos votos dos que abandonavam o avião dos ditadores, prestes a se espatifar por pane seca. Com as Forças Armadas divididas e sem o sopro de legitimidade que se esvaiu poucos anos após a quartelada de 1 de abril de 1964, o regime agonizava.
O brigadeiro Délio Jardim de Matos, então ministro da Aeronáutica, viu na solenidade a chance de chutar o que muitos pensavam ser um “cachorro morto” e, ao mesmo tempo, cancelar a abertura lenta e gradual.
Délio poderia apenas ter se regozijado por inscrever seu nome na obra de importância inegável, mas terminou por resgatar ACM do ostracismo. Num discurso enviezado, sem dar nomes aos bois, chamou os que antecipavam votos em Tancredo de “traidores e covardes”.
Político sagaz e com raro senso de oportunidade, ACM vestiu a carapuça e devolveu o desaforo no seu melhor estilo. Combinou o jogo com Roberto Marinho, que depois o nomearia ministro das Comunicações de Sarney, e repetiu à exaustão, a sua nota-resposta duríssima nos telejornais da Rede Globo: “”trair a Revolução de 1964 e a memória de Castelo Branco e Eduardo Gomes é apoiar Maluf para presidente.”
A canelada do brigadeiro deu ao ACM original um status que ele não teria na Nova República de Tancredo, depois de duas décadas de vassalagem dedicada aos ditadores militares que o nomearam prefeito de Salvador e duas vezes governador sem um voto sequer.
A tragédia histórica para os baianos foi o prolongamento do arbítrio que infelicitou o Brasil por 21 anos. Na terra de Castro Alves e Ruy Barbosa, uma espécie de ditadura civil-policial se ergueu depois da vitória estupenda de Waldir Pires, em 1986, somente sepultada na eleição de Jaques Wagner, em 2006.
Neste 23 de julho de 2019 o capitão reformado Jair Bolsonaro, primeiro presidente militar eleito desde 1985, desembarcou em solo baiano depois de tentar pisar na honra do povo nordestino, a que se referiu como “paraíbas” com intenção de pejorar.
Na caminhada entre o avião e o salão de embarque, o neto do ACM que peitou os militares e botou no bolso os presidentes Collor e Fernando Henrique (“Pode escrever porque estou falando para ser publicado: Fernando Henrique é um homem falso”), acelerava os passinhos curtos para acompanhar a marcha de Jair.
Se a conveniência política ou a falta de coragem o impediram de se solidarizar com os “paraíba”, o silêncio lhe cairia como uma “bênção”, como gosta de repetir o seu colega e aliado conquistense, Herzem Gusmão.
“Rui é raivoso e recalcado”, disse o prefeito dono de empresas de comunicação que desconhece a sensibilidade dos microfones das câmeras modernas. O vídeo viralizou nas redes sociais, expondo a sabujice ao Brasil.
Diga-se o que se quiser dizer do velho ACM, truculento e implacável com os adversários. Mas, à sua maneira, ele nunca titubeou em defender a Bahia e o Nordeste nas contendas com os preconceituosos do sul. Sabia da sua matriz e não arregava. “Você é um moleque, filho da puta. Vou passar por cima de você. Quem é você para fechar um banco da Bahia? Lá as coisas não são assim”, disse a Gustavo Franco, presidente do Banco Central que fechou o Banco Econômico.
Contestar o mito ACM, não impede reconhecer o gênio político. Seu cérebro deixou órfã a direita brasileira, que glorifica um sujeito chucro, a quem os generais de sua época, tenentes de 1922, rotulavam de “bunda-suja” – jargão militar para definir oficiais medíocres, incapazes de ascender na carreira por mérito próprio.
Sim, o velho ACM nessas horas faz falta. Faz falta o seu humor cáustico, deliberadamente cínico na hora de espicaçar adversários, para o deleite de jornalistas, com um sorriso contido nos cantos da boca encimada pelo bigode impecavelmente aparado.
Frasista ferino, deixou para a crônica política uma vasta coleção de máximas. E um herdeiro com aparente falta de estatura política para carregar como nome, uma sigla de três letras cujo significado pode ser resumido numa palavra: poder.
“Só duas siglas pegaram neste país: JK e ACM”. Quando soltou mais esta máxima, seu neto já contava 16 anos e ele talvez não avaliasse o peso e o acerto das suas palavras.
Tragédia e farsa. Para quem desconfiou dos limites do agnome do velho ACM na fuga da eleição de 2018, quando confrontaria o governador Rui Costa, as dúvidas foram sanadas na sabujice de 23 de julho de 2019. A repetição da história na inauguração de um aeroporto nos revela um outro personagem chamado Antônio Carlos. Mínimo.
*Ernesto Marques é jornalista e radialista