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Um desembargador, no litoral paulista, circulava sem mascara e chamou o guarda civil que o abordou de analfabeto antes de rasgar a multa pela infração cometida. Uma mulher, no Rio de Janeiro, “corrige” um fiscal sanitário que a orientava sobre o uso de máscaras, dizendo que o parceiro dela não é cidadão, mas sim “ENGENHEIRO CIVIL, MELHOR DO QUE VOCÊ”.
No Estado Democrático, é princípio basilar que todos sejam tratados de maneira igual perante a lei. Todavia, desde a formação do Estado Brasileiro, o poder econômico e financeiro sempre buscou garantir que lei lhes alcançasse com todos os favores possíveis e nenhum rigor.
No país do futebol, para quem tem relações com o poder econômico ou político, uma ligação resolve qualquer problema. As relações e influências que se adquire através das oportunidades que os privilégios proporcionam, possibilitam tratamentos diferentes.
A velha carteirada de formação acadêmica da elite brasileira vale mais do que a educação em sim. Rasgar a multa e atirar o papel no chão é uma atitude possível somente para quem pertence a esta turma.
Imagina um réu pobre não aceitando a pena, pegando a sentença e rasgando na frente do juiz? No mínimo uma pisoteada no pescoço, um mata leão e pontapés seriam os carinhos recebidos pelo desacato.
Recentemente um motoboy que foi humilhado pelo morador do condomínio de luxo no interior de São Paulo ouviu: “tu é analfabeto, nunca vai ter isso aqui, você tem inveja dessas famílias, você tem inveja dessa cor.”
A bem da verdade, o movimento de indignação da sociedade frente aos desmandos escancarados vem crescendo diariamente. Em que pese as tentativas de carteiradas para descumprir as leis ou para garantir a impunidade persistam, a aceitação já não é tão silenciosa.
Contudo, isso não significa o fim da aristocracia dos privilégios, apenas sinais de mudança do modus operandi. O Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal e Conselho Nacional de Justiça solicitaram prioridade para receberem vacinas contra a COVID-19.
Busca-se então uma normalização para que os privilégios do judiciário e das elites em geral sejam justificados (e normalizados) através de um discurso de mérito pessoal e pela importância da função, mascarando os processos desiguais de acumulação de distintos tipos de benesses.
O argumento tenta justificar que membros do Poder Judiciário tenham prioridade na vacinação frente a garis, por exemplo. E ainda insistem que estão excessivamente expostos ao virús.
Efetivamente, a posição privilegiada tem como consequências a produção de uma homologia entre os interesses das elites do país, e sobretudo um distanciamento da realidade econômica e social do cidadão comum. Eles realmente acham que estão mais expostos ao vírus do que um gari. Por razões obvias, não sabem o que um gari faz, não conhecem um gari.
A estruturação da aristocracia dos privilégios produz uma dificuldade de compreensão e de empatia em relação às carências materiais e aos interesses dos grupos menos favorecidos. A turma do “você sabe quem está falando” só conhece e compartilha os interesses e espaços frequentados pelos privilegiados.
Não há dúvidas de que os poderes e as autoridades necessitam de prerrogativas que garantam o seu exercício, sua independência e sua autonomia. Mas a Democracia substancial não tolera privilégios, não tolera carteiradas, nem as grosseiras que desacatam guardas civis e motoboys, nem as mascaradas de bom-mocismo que buscam prioridade em vacinação. Em um país sério e Democrático não há lugar pra “você sabe com quem está falando?”.